domingo, 25 de mayo de 2014

A luta de libertação angolana no século XX


A luta de libertação angolana no século XX deve ser enfocada, com sua especificidade própria, como intrinsecamente ligada à evolução das resistências provocadas pela expansão do sistema capitalista mundial. Nesta perspectiva, reduzir esta luta a uma dimensão puramente política significa limitá-la à conquista da independência, às disputas pelo poder político e menosprezar seu alcance. A luta de libertação nacional angolana tem, em sua base, um rico conteúdo. Sua edificação é, antes e acima de tudo, uma questão de identidade cultural, elemento essencial e permanente para a edificar suas instituições próprias, fundamentado no reconhecimento das diferenças, e de elaborar um projeto social, nacional e popular baseado no diferendo. Ela se desenvolve a partir do reconhecimento dos interesses e das opiniões específicas do povo angolano, e da necessidade de um debate com a participação de todos, excluindo-se os que compactuam com interesses exteriores à nação, sobre as formas de criação de riqueza (relações sociais e econômicas, forças produtivas) e sobre o marco referencial desta organização (relações políticas e exercício do poder).

A democracia é, provavelmente, a forma de organização mais conveniente à concretização da formação social angolana, mas não deve ser confundida com uma ordem particular e "autônoma", o Estado. Ela é, principalmente, uma forma e um princípio que organizam e articulam todos os elementos que compõem a formação social angolana, de forma aberta e não secreta, permitindo a participação de todos, totalmente imbuída da preocupação de partilha e de solidariedade, de justiça social. Ela diz respeito a cada ordem e a todas as ordens ao mesmo tempo.
Da Importância de Angola
O regime colonial português encarnou o encontro entre as diferentes formações sociais africanas e o nascente capitalismo português e europeu. O final do século XIX e o começo do XX marcam um período de articulação dessas formações não-capitalistas com a dominação do capitalismo europeu. De forma artificial, e segundo interesses regionais das burguesias portuguesa, alemã e britânica na região, constitui-se então um espaço geográfico, político, econômico e social denominado Angola. Mas, no período entre as duas grandes guerras e, sobretudo, após 1945, vai surgir um novo parceiro, a burguesia americana, cuja presença em Angola não cessará de crescer até 1975, e principalmente depois.
De fornecedora de escravos, Angola passa a produtora de matérias-primas (diamantes, ferro, petróleo, manganês, urânio...), produtos agrícolas (açúcar, algodão, café, sisal...) e provedora de força de trabalho barata. Para a produção da burguesia portuguesa, Angola representava, seguramente, um mercado; mas, para o capitalismo mundial, Angola era uma reserva de matérias-primas e de força de trabalho. É somente a partir dos anos 1960-1970, com a maior abertura aos investidores portugueses e estrangeiros e uma certa industrialização, que Angola se torna um mercado interessante para a produção do capitalismo mundial. Dessa forma, a dominação das indústrias de exportação acentuou a dependência da colônia em relação ao capital mundial (Torres, 1983:1102, 1107) e a burguesia portuguesa teve então de ceder maior espaço às burguesias americana e européia.
A industrialização e o desenvolvimento da empresa capitalista em Angola estavam, dessa forma, ligados ao capital financeiro português e mundial. Frágil em relação aos seus concorrentes, a burguesia metropolitana portuguesa se agarrava às suas colônias: com raríssimas exceções, a subcontratação, a joint-venture e a intermediação (ver nota 5) tornam-se as únicas formas nas quais a burguesia colonial podia se refugiar. As colônias, e Angola em primeiro lugar, permitiam-lhe realizar uma certa acumulação, ao mesmo tempo em que constituíam, com a imigração para a Europa e para a América, um meio ideal para solucionar o problema da mão-de-obra excedente. A recusa da ditadura portuguesa em conceder a independência a Angola era, antes de tudo, ditada pela necessidade de modernização do capitalismo português.
Mas a eclosão da revolta nacionalista e o engajamento dos movimentos de libertação nacional em uma guerra aberta contra o capitalismo colonial tornam-se um obstáculo àquela estratégia, pois representam uma tentativa de reapropriação da história angolana. A vontade de implantar um regime neocolonial revelou-se aparentemente um fracasso, não devido à industrialização de Angola, mas basicamente pela própria descolonização (Ferreira, 1985:107). Entre 1969-1970, a burguesia portuguesa procura, então, financiar a exploração acelerada da colônia, aumentando ao máximo a valorização dos recursos angolanos. As taxas de crescimento dos principais produtos minerais (diamante, petróleo, ferro) e de certos produtos agrícolas (quarto produtor mundial de café) alcançam cifras recordes. As indústrias de transformação e os serviços também dão um salto significativo, bem como o setor financeiro, em que o capital português se alia ao capital mundial, em particular ao americano e ao britânico.
A industrialização de Angola durante aquele período não visava, pois, o desenvolvimento autocentrado do capitalismo colonial, mas sobretudo as exigências "internas e externas, políticas e econômicas, da sociedade central metropolitana", como sublinha Torres (1983:1118). O custo da guerra colonial, o "gosto" por um certo capitalismo de rendas e os esforços financeiros exigidos para este desenvolvimento precipitado favoreceram a implantação da burguesia mundial em Angola. A intervenção da África do Sul permitiu à burguesia colonial integrar-se progressivamente no espaço capitalista sul-africano e objetivar uma certa autonomia em relação à burguesia portuguesa. Esta evolução dos acontecimentos e a política portuguesa de povoamento branco constituíam um dos elementos que favoreceram a estratégia sul-africana na região, ameaçando a construção da nação angolana.
O modelo de desenvolvimento de Angola fazendo parte da zona dominada pela África do Sul, sempre na ordem do dia, estaria, assim, de acordo com a estratégia total do apartheid após 1975, que se traduz pela dominação de uma burguesia branca com base na criação de um mercado interno com exploração de uma força de trabalho negra marginalizada. A integração deste espaço na região, principalmente em termos de capital e de trabalho, era e permanece uma necessidade do capitalismo sul-africano. Seu anticomunismo visceral não era mais que um verniz ideológico, da mesma forma que o apartheid não se reduz a uma questão de cor de pele. Essas políticas refletiam uma estratégia racional do desenvolvimento do capitalismo sul-africano.
Mesmo que possa parecer paradoxal, a luta pela construção da nação angolana recoloca o país no seu verdadeiro contexto, a África Austral. Não mais se trata de escolher entre o colonialismo ou o neocolonialismo português e a libertação nacional enquanto conquista política, mas sim entre uma integração mundial maior ou uma integração regional. A integração mundial significa a recolonização de Angola, seja através de mecanismos regionais sob controle sul-africano, seja pelo controle direto dos centros do sistema mundial, Estados Unidos da América à cabeça. Em uma perspectiva contrária, a integração regional exigiria um compromisso segundo os interesses nacionais e sociais dos países da África Austral, em um esforço de partilha e de comunhão de bens e de recursos. Esse compromisso, condição de passagem da conquista do poder político à libertação social e da possibilidade de fazer progredir a construção da nação democrática, não diz respeito unicamente a Angola, mas a todas as nações da região.
A Sombra da Economia sobre a "Democratização"

Esta mudança de atitude política das potências do centro, sobretudo dos EUA, em relação a Angola, está ligada, em parte, à sua debilidade econômica. Da articulação de uma ordem oficial a uma desordem "informal", hoje o sistema mundial atravessa um período de desordem mal gerenciada e mal controlada. O sistema mundial vem se modificando de um período para outro mas, por razões estruturais (seu lugar no sistema) e políticas (a intermediação de suas elites e a guerra de agressão conduzida pelos EUA e pela África do Sul), Angola não se ajustou.7 Em nossos dias, a economia internacional caracteriza-se por uma "intensificação das trocas comerciais" entre os países do centro e uma "mundialização" e "interpenetração de capitais" (Amin, 1991:8), pela prestação de serviços e pelas indústrias de ponta que vêm massivamente se valendo do conhecimento. A RST (Revolução Científica e Tecnológica) permitiu aos países centrais aumentarem consideravelmente a parte de produção de bens sintéticos, mais flexíveis e mais versáteis que os produtos tradicionais, setor em que os africanos periféricos ainda podem esperar ocupar um lugar. Com baixos índices de produção e de acumulação de capital e uma dívida substancial, aos quais vêm se incorporar os efeitos perversos da guerra, Angola se afunda em uma extrema dependência do mundo exterior, contado apenas com um único produto, o petróleo.
Visto sob este aspecto, Angola teria "perdido" sua importância. A queda da URSS e dos países do Leste europeu faz diminuir seu valor geopolítico e militar. Entretanto, ainda que mais vulnerável às pressões e dominações do centro, Angola está, de uma forma ou de outra, inserida na economia mundial e submetida à sua lógica. Os Estados do centro manifestam um certo interesse e continuidade em preservar a reserva que Angola pode representar, em se tratando de matérias-primas e de força de trabalho, ao preço da manutenção da polarização do sistema e da miséria extrema dos camponeses e dos trabalhadores angolanos.
A crise econômica se eterniza e abala, de igual forma, tanto um pólo quanto outro. É uma crise do sistema mundial: "Trata-se de uma crise geral do modelo de acumulação no sentido de que a maior parte das formações sociais do Leste e do Sul são incapazes de assegurar uma reprodução ampliada e às vezes também uma reprodução simples" (Amin, 1991:11).
Daí a necessidade de restruturar o conjunto do sistema, movimento que provoca a desvantagem visível, a desordem que o caracteriza e a ineficácia de certos mecanismos de regulação econômica (o mercado) e de regulação política (os mecanismos de estruturação da hegemonia mundial). Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e a sua posição hegemônica, econômica e financeira (Cumings, 1991:205-6) devem ter em conta a força de antigas potências, uma na Europa (Alemanha), a outra na Ásia (Japão), com as quais deveria compor a direção da economia mundial.8 A Guerra do Golfo ilustrou até que ponto a posição americana está abalada. Cada vez mais seu papel se resume ao de gendarme do sistema mundial, porque sua potência militar segue inconteste (Chomsky:1991), o que não significa declínio do seu poder econômico e financeiro.
No outro pólo, a lógica de ajustamento estrutural se inscreve na procura de soluções para a acumulação de capital e procede à imposição do mercado como mecanismo de regulação e de unificação do sistema. Onde ainda possa existir possibilidades de resistência, mesmo que ínfimas, a imposição da "democratização" é um elemento da "geocultura", daqueles "quadros de referência cultural no interior dos quais o sistema mundial opera" (Wallerstein, 1991:11). Isto faz parte de um longo movimento histórico que visa, a cada etapa, maior integração das periferias à lógica do centro:
  O Ocidente fez mais que modificar seus modos de produção, ele destruiu o sentido de seu sistema social ao qual esses modos estavam fortemente aderidos. Desde então, o econômico tornou-se um campo autônomo da vida social e uma finalidade em si mesmo. As velhas forças onde predominava o ser mais, foram substituídas pelo objetivo ocidental do ter mais. (Latouche, 1989:27)
Para o Banco Mundial e para o Fundo Monetário Internacional a "democracia" estaria melhor servida se Angola aplicasse seus programas de ajustes, cujo objetivo principal é o de reforçar o mercado em relação ao Estado. Segundo essas instituições, a privatização da propriedade pública é, por excelência, a garantia do pluralismo, assim como um mercado mais livre é a certeza da descentralização de decisões, da multiplicação de centros de poder e, por conseguinte, do fortalecimento da "sociedade civil" (nesse sentido, sociedade civil é sinônimo de sociedade "burguesa"). Entretanto, esses programas ampliam, na maioria das vezes, a inflação e o desemprego, ao mesmo tempo em que controlam os salários, reduzem as fontes de financiamento e cortam os subsídios. Como conseqüência, a maior parte dos ganhos dos cidadãos angolanos diminuíram em termos reais: 40% deles vivem abaixo do nível de pobreza absoluta, o que leva a um aumento do setor informal e ao mercado paralelo (Morais, 1990). A esta queda real dos ganhos veio se juntar o agravamento dos problemas sociais "crônicos" da economia, da desnutrição, das mortes prematuras e do desespero. Para estes cidadãos angolanos, o ajuste estrutural assemelha-se a um massacre, e não ao reforço da sociedade civil. Rapidamente se dão conta de que mulheres e crianças são as primeiras vítimas destes programas. O Unicef prega abertamente um "ajuste estrutural com face mais humana" (Pearce, 1989). A necessidade de "ajuste" da economia angolana certamente não está em pauta, dado o êxodo massivo dos quadros portugueses quando da independência, os males causados pela guerra e as políticas econômicas após 1975 (Martin e Johnson, 1989; Lubati, 1989; ECA-UN, 1989). Isto explica, em parte, a gestão deficiente e desastrosa da produção e da distribuição nacionais. Os problemas se situam, antes de tudo, no nível das soluções que o Banco Mundial e o FMI querem impor (Africa South, 1990).
A especificidade angolana, relacionada ao clima de guerra e às despesas militares daí decorrentes, são conseqüências de uma política cega por parte dos Estados Unidos e da África do Sul, tanto quanto da cobiça das elites políticas angolanas. A dispensa de 40 a 50% dos empregados públicos de Angola não pode ignorar o fato de que, na maioria das vezes, o Estado é o único empregador possível. Portanto, é fundamental ativar o sistema de produção, criar programas de formação da força de trabalho e de proteção de seus direitos sociais, pois a preservação de uma reserva de mão-de-obra não qualificada aumenta a miséria. Por isso, a privatização das empresas públicas angolanas representa um embuste, pois não reforça a propriedade, a produção e o consumo nacionais para o desenvolvimento de um mercado autocentrado. Ela deve favorecer o investimento produtivo, nacional e internacional, e a criação de mecanismos nacionais de acumulação de capital, em lugar da compra e venda de serviços e de equipamentos muitas vezes inúteis. Esta privatização não deve levar Angola a uma renovada dependência econômica em relação aos centros. A nova ordenação do sistema mundial constitui uma renovação dos Pactos Coloniais e introduz, por intermédio da privatização, o domínio dos centros sobre as fontes de recursos naturais da periferia, mesmo onde isso já não era mais uma realidade ou corria o risco de o deixar de ser.
O "Estado" angolano caracteriza-se pelos poucos serviços que oferece a seus cidadãos, tanto nas áreas social e econômica quanto na cultural, apesar dos esforços realizados após 1975. Comparados ao regime colonial, estes serviços estão realmente "democratizados", mas se os comparamos às reais necessidades do povo angolano, damo-nos conta de que está longe de alcançar seus objetivos. O ajuste estrutural não apenas evidencia este resultado mínimo, como acentua o diferendo aumentando as desigualdades e a injustiça dessa nova distribuição. Defrontamo-nos, assim, com uma contradição paradoxal! Em uma situação de desenvolvimento débil das forças produtivas e de pobreza, a distribuição da riqueza nacional é desigual, menos desigual, porém, que quando o desenvolvimento conduz a uma nova riqueza. Isto põe em destaque a importância dos mecanismos e das modalidades de distribuição da riqueza nacional e das transferências desta mesma riqueza de Angola para os centros e a urgente necessidade de as redefinir segundo os interesses nacionais.
Em tal conjuntura, a democracia é uma ilusão! Contam apenas a aparência e o formalismo. O povo angolano torna-se um elemento passivo da vida social. A qualidade é substituída pela quantidade, prelúdio do desenvolvimento e da ampliação da reificação.9 E é isso que consolida, por um lado, a tendência à uniformização de todos os aspectos da vida no interior do sistema mundial (integração/racionalidade) e, por outro lado, a tendência à redução da consciência das sociedades civis a um simples reflexo. Donde se estabelece a lógica da reificação: ampliar as bases da acumulação privada do capital impondo a "idolatria do dinheiro". Tudo é mercadoria, tudo está à venda. O que leva simultaneamente ao aumento das possibilidades de realização de lucro e das condições de edificação de um consenso ideológico em torno dos valores econômicos, em particular da exploração da força de trabalho e do exercício da governabilidade.
Mesmo que a universalização do modo de desenvolvimento, segundo o centro do sistema mundial, seja claramente marcada por um determinismo econômico, a nação angolana deve definir seus interesses e sua escolha nesse contexto. Após a independência, os Estados centrais intervêm regularmente na vida econômica, política e cultural de Angola para estabelecer e para preservar as condições de reprodução do sistema. Mas esta intervenção não é exclusividade de Angola. Na África, esses Estados têm enviado as forças militares locais para se livrar das elites locais que se tornaram incômodas. Porém, mais sutil e freqüentemente, os centros forjaram os mecanismos econômicos, financeiros e comerciais que ligam inexoravelmente os países africanos às metrópoles, que corrompem o poder político (Péan, 1988; Couvrat e Plesse, 1988) e provocam danos ecológicos consideráveis (Bouguerra, 1985; Vidal, 1992). Os Estados do centro e suas instituições introduziram um novo modo de intervenção na vida africana: "o condicionamento político". Este permite peneirar a ajuda, outro mecanismo financeiro que deu suas provas de utilidade e benefício em um mesmo sentido, ou seja, o centro sempre leva vantagem em relação à periferia. Desde então os centros utilizam este mecanismo como uma forma de acelerar os processos de integração da África à acumulação mundial. A atual reforma política não objetiva o desenvolvimento autônomo e autocentrado da formação social angolana, mas a liberalização do mercado. Não é apenas isto que está em jogo em Angola, mas constitui o objetivo principal.
Notemos, entretanto, que esta ajuda, que raramente alcança um nível significativo, não respeita os compromissos assumidos internacionalmente, mesmo em relação ao orçamento dos países "beneficiários". Ela é direcionada de forma tênue às forças econômicas e populares. Ela não reforça os grupos nacionais nem o mercado interno, elementos de uma autonomia tão necessária ao desenvolvimento da periferia angolana. Esta ajuda não apóia o desenvolvimento e a participação verdadeira das sociedades civis na democratização do país. Pelo contrário, ela incrementa a corrupção do aparelho político e mascara as relações sociais e econômicas concretas, insistindo no formalismo político que é próprio da imagem do modelo democrático dominante dos Estados centrais:
   Nós elogiamos os méritos do Estado de direito, da eleição e da representação, e temos razão; mas esquecemos que milhares de nossos contemporâneos vivem a maior parte de suas vidas em um mundo – o mundo da produção e da empresa – onde o direito apenas se aplica quando se faz respeitado pela força, e onde o poder é exercido segundo os modelos que se situam em algum lugar entre o feudalismo e o despotismo esclarecido, mas que não dizem certamente respeito à democracia. (Latouche, 1989: 27)

Quando a Democracia é Também Justiça
Insistindo sobre o formalismo e a dimensão política da "democratização", o sistema mundial finge ignorar as relações sociais concretas e reduz a liberdade dos cidadãos angolanos à emancipação do "pretenso Estado" e do mercado locais. Esta autonomia conquistada emancipa-se em relação às sociedades civis, visto que ela é uma condição de legitimação da intermediação e da dominação do mais forte. A democracia angolana não será concreta a menos que venha a ser o mecanismo de libertação das sociedades civis, do cidadão angolano coletivo e individual. O exagero daqueles partidos políticos angolanos que celebraram a "vitória" do formalismo democrático ilustra-se por uma vasta campanha de desinformação, manejada pelos centros do sistema, para os quais o conceito de democracia está impregnado de esperas desmedidas e portador de falsas esperanças. Estes mesmos partidos fizeram crer que a realização da democracia formal resolverá os problemas não apenas políticos, mas sobretudo sociais e econômicos da formação social angolana, e que somente o capitalismo é compatível com a democracia. Pretendem que as democracias formal e política coloquem todos os cidadãos em um plano de igualdade, ou seja, que ela conduzirá a uma distribuição mais igual e mais justa dos benefícios e dos recursos econômicos e sociais.
A democracia em Angola não aparecerá como uma forma de organização mais ordenada, mais consensual e mais estável. Sua própria natureza indica que ela constitui um compromisso que se constrói continuamente entre a desordem, o desacordo e o movimento. Certamente ela conduzirá a uma administração política mais aberta, mas isto não significa que a economia também o será.13 Certos objetivos da organização da economia angolana, definidos pelo Banco Mundial e pelo FMI – ou seja, o direito de possuir a propriedade e reter os lucros, a função de "depuração" do mercado, a liberdade de produzir sem regulamentação estatal e até mesmo a privatização das empresas públicas – podem se tornar obstáculos à democratização de Angola. O "Estado" democrático a ser construído em Angola terá a necessidade de deduzir taxas e impostos e regulamentar os mais "gulosos" para evitar, o mais possível, os monopólios, os cartéis e os oligopólios e para proteger os direitos da coletividade da intromissão abusiva dos que possuem a propriedade. Assim, a democracia se definirá pela pluralidade das formas de propriedade, sem ceder à tentação de privilegiar uns em detrimento de outros. Isto significa simplesmente que certas noções de liberdade econômica, em geral levadas adiante pelos modelos neoliberais, não são sinônimo de liberdade política. Na maioria das vezes, as primeiras impedem as segundas. Certos partidos políticos, por exemplo, compram, literalmente, o voto do cidadão, outros se vendem aos países estrangeiros para obter apoio financeiro e material.
Um futuro "Estado" democrático angolano deverá prestar contas às sociedades civis. Daí a necessidade urgente de criar organismos possuidores de direito de veto, totalmente independentes dos partidos políticos e do Estado e capazes de controlar e verificar as ações destes. A meta dessas instituições civis seria a de afirmar a soberania da nação, de vigiar a execução do mandato confiado à sociedade política e de garantir um verdadeiro Estado de direito democrático.
A independência ou a separação dos poderes não é um problema exclusivo da sociedade angolana. Constantemente podemos encontrar o mesmo problema nas "democracias" dos países do centro. Contrariamente ao que pensam os partidos políticos, nada impede a criação de instituições que emanem das sociedades civis e que assumam um papel de "guardião" constitucional. O Estado e os partidos políticos não são responsáveis apenas diante do Parlamento, mas também diante do povo. O Parlamento, peça-mestra da sociedade política, é por excelência o lugar de legitimação do exercício do poder, ao passo que a democracia exige que este lugar seja assumido pelas sociedades civis.

A questão da distribuição econômica e social é essencial ao debate sobre a democratização da formação social angolana e de suas relações com o centro do sistema mundial. Da forma por ele considerada, esta democratização não traz necessariamente em seu rastro o crescimento econômico, a paz social, a eficácia administrativa, a sã, honesta e aberta governabilidade, a harmonia política, os mercados "livres" e eqüitativos, o "fim das ideologias", e menos ainda, o "fim da história"! Desde a colonização, os episódios de resistência do povo angolano, ao contrário, têm sempre como pano de fundo o desenvolvimento, em diferentes níveis, de ideologias nacionalistas e a tentativa de retomada de sua história. Esta reestruturação se baseia na força do movimento de reificação e insistência sobre o mercado, sobre a privatização e sobre o formalismo eleitoral. Ela só se interessa pela criação, na periferia angolana, das condições necessárias à reprodução do capital, pela reserva da força de trabalho e das matérias-primas. Para que serve um crescimento econômico, se os mecanismos e as regras de distribuição em Angola não favorecem os produtores e os consumidores locais, mas principalmente as empresas transnacionais, os Estados do centro, as pequenas e médias empresas internacionais e as elites compradoras locais?
A democracia se resumiria, então, às formas de legitimação da reestruturação do sistema mundial e do lugar que ele destina a Angola? Ela deve deixar de ser um princípio de legitimação, que a reduz a formas de governabilidade baseadas na autoridade do mais forte14 e reduz o espaço político angolano a uma legitimidade reconhecida do exterior, para se transformar em um princípio de justiça, no fio condutor da organização da nação angolana como uma totalidade. Sua definição, enquanto legitimidade, repousa sobre a modernização liberal ocidental que privilegia a liberdade individual, definida pelo direito como forma de limitação do poder. É também nessa ideologia liberal que se encontra a noção de liberdade inovadora do direito como fundamento do poder ilimitado da vontade geral (soberania). E aí temos posições contraditórias: uma, afirmando a precedência do direito sobre a legislação, limitando, assim, a força da soberania; a outra estabelece que todo "contrato social" é possível a qualquer momento. Para esta, deve se fazer tábua rasa e criar a ordenação jurídica da sociedade de forma voluntarista. Aqui, o direito e a lei se confundem e ambos pretendem ser a expressão da vontade geral. E é feita a jogada, visto que esta vontade geral é identificada com a soberania do Estado e não da nação. Aparentemente contraditórias, estas duas proposições formam uma unidade que se tornou a coluna vertebral do Estado democrático liberal. 
Esta confusão entre legitimidade e legalidade provoca um debate muito importante, o do Estado de direito. Ele encontra suas fontes na monarquia absoluta francesa para a qual "a soberania é limitada pela lei divina, natural e constitucional" e na crítica dos iluministas (Montesquieu em particular), principalmente no "mito fundador" do formalismo democrático que é a separação dos poderes (executivo, legislativo e judiciário). Uma outra fonte, provavelmente mais importante, é a monarquia constitucional inglesa. Ela pretende conceder a supremacia aos "direitos individuais dos sujeitos" e o papel principal de controle constitucional ao jurídico (Lauvaux, 1990:46-52). Nenhuma das partes conquistou um lugar concreto nas sociedades civis. É ainda o liberalismo dominante do século XIX que reduz o controle do exercício do poder político a um outro órgão do Estado. Este deve se submeter ao direito que surgiu como por encanto, "autônomo". O mais incrível é que o Estado de direito se parece perigosamente com o direito do Estado, visto que o povo, ao delegar a sua decisão, é afastado deste processo de limitação do poder. Na "democracia representativa liberal", o Estado, sob pretexto de representar a maioria, definiu os direitos, escolheu os indivíduos aos quais este deve ser aplicado, indivíduos que constituem seu objeto concreto, e o quadro no qual isso deve ser feito. A idéia de separação de poderes é reificada a tal ponto que

    [...] na sua apreciação dos regimes africanos, eles (os juristas e os professores de direito constitucional) sucumbem ao fascínio do princípio da separação de poderes. É assim que, na quase totalidade, os Estados africanos consagram ao menos uma linha de suas constituições a este "princípio imortal" (de Gaudusson e Conac, 1990:6).
O que está em pauta não é a necessidade de limitar o exercício do poder, mas o fato de esvaziá-lo de seu sentido primeiro. Nunca será bastante repetir que, na democracia, a soberania pertence ao povo e não ao Estado e aos partidos políticos. Já não mais se pode confundir as reivindicações destes últimos. Infelizmente, foi o que se passou no já célebre caso de Benguela, no qual um partido político reivindicara, pela força, certas "propriedades", sobrepondo-se ao respeito às regras de direito em vigor e ao próprio povo. A atuação da justiça deve ser considerada além da prática dos tribunais e deve incluir a distribuição das liberdades e das riquezas, dos benefícios e dos encargos econômicos e sociais. Portanto, para garantir sua independência, a justiça deve ser acessível a todos mas, sobretudo, ela deve ser responsável perante o povo. Os juízes, assim como os deputados, devem ser eleitos, existindo também a possibilidade da destituição de ambos. O Estado não deve, em nenhum caso, ser juiz e partido. Sua posição seria, no melhor dos casos, contraditória (instrumento e objeto), e no pior dos casos, a presa daqueles que dominam a economia (instrumento). Estaria, assim, em uma condição de conflito potencial (Fisk, 1989) permanente, entre a busca da justiça e a manutenção de uma ordem social dominada por seu componente econômico: "[...] apesar dos princípios proclamados, a justiça é, na realidade de suas relações com o poder político, um serviço subordinado e estreitamente dependente" (de Gaudusson e Conac, 1990:7).O papel da justiça é de colocar os limites, mas os limites justos. Além do aspecto formal da justiça como aparelho de Estado, a justiça justa é ainda o refúgio das lutas para pôr um fim à dominação e à opressão (Lyra Filho, 1983:92-127). Não pode, porém, ignorar os interesses e as reivindicações dos dominados. Qualquer regime político não pode pretender uma justiça justa16 se não leva em conta os modos de distribuição. À época da reestruturação do sistema mundial, a justiça se situa nas relações que ela tece com outras periferias e os centros do sistema, seja no interior ou mesmo no exterior da sociedade angolana. As implicações destas relações podem ser consideráveis. A política agrícola mundial, por exemplo, pode influenciar a determinação das formas da propriedade fundiária em Angola, a forma de distribuição da riqueza produzida localmente, as reivindicações e os protestos dos produtores angolanos e a ação do aparelho jurídico do Estado.

Um Projeto Nacional e Popular?
O apoio e as alianças internacionais muito dizem sobre a natureza da partida que se joga em Angola, durante a luta de libertação, depois da independência e até nossos dias (Santos, 1983). Os processos de intermediação da sociedade angolana começam bem antes de 1975. Mas a independência de Angola, apesar do "cabo-de-guerra" entre os movimentos de libertação nacional e seus aliados no nível do sistema mundial, foi um momento propício à operacionalização de um projeto nacional e popular. Esta possibilidade não podia ser admitida pelos países do centro, em particular pelos Estados Unidos e, em nível regional, pela África do Sul. A defesa dos interesses "nacionais" à época coloca como condição mínima uma nova partilha das riquezas no nível da formação social angolana e no nível do sistema mundial. Como condição máxima, esta possibilidade significaria o caminho da ruptura em suas conseqüências últimas. É evidente que após 1975, dada a agressão militar da qual foi vítima, Angola não possuía as condições, tanto no nível do desenvolvimento de suas forças produtivas, quanto no que se refere às condições políticas, para realizar tal escolha.

No que concerne à África do Sul, uma Angola independente e capaz de promover tal projeto representaria uma ameaça política para os fundamentos do seu estado racista. Atualmente, apesar dos acontecimentos, a ambição do capitalismo sul-africano permanece intacta: dividir o continente africano em quatro grandes regiões políticas e econômicas controladas por África do Sul, Egito, Nigéria e Quênia, objetivando "garantir" um lugar para o Continente africano no momento da reestruturação do sistema mundial em blocos comuns. O regime sul-africano aspira o reconhecimento de sua força econômica e de sua liderança na integração do Continente ao sistema mundial. É verdade que este é o sonho da burguesia branca sul-africana, e que o regime do ANC tem um outro discurso. Aparentemente, este reconhece, acima de tudo, a necessidade da formação de um bloco econômico regional tendo como base a "redução" da dominação sul-africana, no qual a base industrial serviria, em primeiro lugar, para encorajar o crescimento das economias da região.
Entretanto, os problemas que a África do Sul pós-apartheid tem de enfrentar são de tal ordem que este país será tentado a drenar certas riquezas da região para suprir suas dificuldades. Neste caso, Angola deve se enfraquecer para se tornar um fornecedor de petróleo e de mão-de-obra e um mercado para consumo dos produtos sul-africanos. Os países do centro do sistema mundial não se ocupam da possibilidade de um desenvolvimento capitalista forte em Angola, visto que a África do Sul não necessita de concorrentes que a incomodem e que Angola deve permanecer uma reserva essencial, principalmente de matérias-primas.
A democratização de Angola se apresenta como um fenômeno de "dupla face". Na aparência, é uma imposição dos centros do sistema mundial, em particular dos Estado Unidos, que buscam se apropriar para melhor controlar os contornos e as formas e assegurar as prerrogativas de "ajuste estrutural" em Angola. Não obstante, a periferia angolana deve adotar esta democratização para redefinir suas estratégias nacionais e para reconstruir novas formas de resistência popular. Angola jamais deixou de ser uma periferia africana do sistema mundial. Sua especificidade não resulta do regime político criado após a independência, mas de uma longa luta de libertação nacional. Apesar de suas contradições, esta luta era portadora de uma esperança e de um projeto nacional cuja condição mínima de triunfo repousava na concretização de uma mobilização popular democrática para a construção da nação, nas possibilidades de "ruptura" e na sua condição no interior do sistema mundial.
A democracia é ao mesmo tempo um meio e um fim. Esta condição mínima repousa sobre a existência de forças políticas locais organizadas em torno das aspirações populares e capazes de estabelecer uma relação dinâmica com as sociedades civis. Isto constituiria a base sobre a qual a sociedade angolana poderia criar as condições de realização das legítimas aspirações de seu povo que, assim, poderia criar uma produção local para satisfazer um consumo local, ou seja, um mercado interno, autônomo e endógeno, e os mecanismos nacionais (estatais, privados e coletivos) de distribuição para assegurar a justiça social e econômica.
Este projeto nacional e popular, mesmo antes de qualquer aplicação concreta, causou "arrepios" no centro do sistema mundial. A atitude deste foi de encorajar uma saída cega, acompanhada de um furor destrutivo sem precedente e de uma pilhagem ao estilo medieval dos colonos portugueses primeiro, da burguesia racista sul-africana e dos intermediadores angolanos por último. A história das relações entre Angola e os EUA está ainda para ser escrita, mas parece sempre contrapor o interesse nacional de Angola e a exploração de seus recursos naturais pelas transnacionais americanas à atitude arrogante e imperial dos Estados Unidos. A potência americana, mais que qualquer outra potência central, sempre teve um jogo duplo em um esforço de resguardar os interesses de sua burguesia: apoio ao fascismo colonial português, ao fascismo racista sul-africano e aos interesses do Zaire, ao mesmo tempo em que apoiou os movimentos angolanos em cada época que representavam a maior das possibilidades de intermediação (FNLA, UNITA e, finalmente, MPLA).
Assim, a guerra que explodiu após a independência não pode ser reduzida a uma guerra civil. Ela contrapõe duas facções de elites políticas sem a participação verdadeira das sociedades civis, que são as principais vítimas. É, por isso mesmo, uma guerra de agressão: invasões de um exército estrangeiro, financiamento, apoio logístico e material de dois Estados estrangeiros (África do Sul e EUA). A fração dirigente, desta forma, recorreu às forças militares e ao apoio de duas outras potências estrangeiras (Cuba e URSS). Para além dos discursos e da propaganda das elites políticas angolanas e dos Estados do centro, não se trata de uma guerra "étnica", "religiosa" ou de "classes sociais". O conflito entre as duas facções das elites deixa de ter importância, pois o que está em causa é a pretensão, por mínima que seja, de construir um projeto nacional.
Esta guerra que quase aniquila Angola, por não conseguir eliminar a fração dirigente, logrou dividir e tornar intermediária uma boa parte dela. Esta situação representa um risco de suma gravidade para o projeto nacional. Apesar da guerra, o destino do campesinato, todas as etnias confundidas, constitui um exemplo de como as elites fracassaram em seu encontro com a história angolana. Peça-chave na luta pela independência, o campesinato tem sido submetido e maltratado por uns e por outros. Não obstante, existe um outro aspecto capital para este projeto, portador de esperança. A um preço horrivelmente alto, a fração dirigente tem sabido manter intacta a "unidade" do país e preservar a integridade nacional, o que significa que ainda existe um cerne nacionalista capaz de repensar a história do país. Faz-se, porém, urgente pensar a nação e reagrupar todas as forças nacionais e populares, acima dos partidos políticos.
A definição de um projeto nacional e popular "mínimo" deriva diretamente da análise feita da experiência dos anos 1950-1975. A questão crucial que os movimentos de libertação se deveriam colocar às vésperas de 1975 dizia respeito à capacidade de pensar a conquista do poder em termos dos interesses da nação e não da ambição de suas elites dirigentes: como construir um "Estado" que estivesse realmente a serviço da nação e do povo?
Esta questão permanece, ainda hoje, como central na "democratização" angolana. Mas, na ausência de sociedades civis fortes e suficientemente autônomas, capazes de vencer as alianças internas e de definir clara e ativamente o interesse nacional, o "Estado" permanecerá debilitado face à oposição externa (capital mundial) e interna (intermediários). Por isso as eleições eram importantes, se bem que a pressa em realizá-las nessas condições tenha transformado a futura "democracia" em uma noz vazia. A democracia não se constrói em um dia, mas todos os dias. Ela deve abranger todos os campos da sociedade angolana, na qual o ator principal é o povo e o objetivo supremo a construção da nação, isto é, um espaço público (do povo). Estes são permanentes. O demais é efêmero!
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